Continuação da entrevista do Lama Padma Samten
3 – Quais as melhores lições que podemos e/ou devemos tirar deste momento?
Parte desta questão está respondida nas perguntas anteriores, mas há alguns elementos que eu gostaria de somar aqui. Um dos fatos que me chama muito a atenção neste momento é como as pessoas pobres conseguem socorrer as pessoas pobres. A maior riqueza neste tempo de aflição é justamente a compaixão. Me chama muito a atenção que os atores econômicos que sempre foram constantemente protegidos pelo governo neste momento se retiram e não revelam força. Revelam fraqueza. Curiosamente aqueles que revelam força não revelam a força do universo econômico, mas a força compassiva.
Algumas grandes empresas disponibilizaram recurso e capacidade de organização. Isto é muito extraordinário. Mas também muito extraordinário é que em regiões muito pobres as pessoas pobres se ajudam, chegam a compartilhar garrafas de água para que outros possam beber ou se higienizar um pouco. No limite de sua própria carência, seguem se protegendo e se ajudando uns aos outros. Este potencial me ajuda a ver nisto o exemplo da fala do Dalai Lama quando diz que “o mundo não é sustentado pela Economia, mas sim pela Compaixão”. E a gente está podendo ver de forma clara este tipo de exemplo.
4 – Em sua história, a humanidade já passou por grandes crises. Qual seria o olhar diferencial necessário para entendermos a pandemia como uma oportunidade de evolução para um estágio mais elevado?
– A evolução da humanidade sempre se dará através de uma mudança para referenciais mais elevados. Se neste momento pudermos entender que surgem referenciais mais elevados – como a compaixão – no meio de uma crise, isto seria maravilhoso. De uma forma mais elaborada, se nós fizermos surgir compaixão, amor, alegria, equanimidade, generosidade, moralidade, paz, energia constante, concentração e sabedoria (descrição das quatro qualidades incomensuráveis e das seis perfeições) nós vamos construir um mundo muito melhor. Se nós usarmos um software melhor, ou seja, se usarmos a nossa capacidade de entender melhor os outros seres, não apenas os seres humanos mas todos seres, se nos alegrarmos não só com os seres humanos mas com todos os outros seres da natureza, se formos capazes de entender as limitações e as realidades das nossas vidas, se formos capazes de fazer ações melhores e evitar ações piores e entendermos que aquilo que não nasce, não morre, estaremos entendendo as cinco sabedorias. Quando entendemos as cinco sabedorias naturalmente brota em nós um nível de lucidez, de compaixão e de amor por todos os seres. Isto constrói mundos melhores. Nós podemos entrar em crises e no meio das crises podemos construir mundos piores se nós nos tornarmos mais autocentrados, mais raivosos, mais apegados e avarentos e a partir disto manifestarmos orgulho, agressão, apego, indiferença, carência, raiva, rancor, ódio e medo. Estas seriam qualidades que vão produzir muito sofrimento. Assim, mundos melhores a gente constrói com software melhor. E ciclicamente, quando nós esquecemos disto e entramos num mundo autocentrado, tudo piora. A humanidade já passou por grandes crises, já passou por períodos melhores e agora seria um tempo em que tudo o que a gente entendeu poderia nos impulsionar na direção de um software melhor, uma forma melhor de produzir as nossas realidades.
5 – O Budismo fala sobre a “Era da Degenerescência”. Por outro lado, aspiramos a chamada “Era de Aquário”. Esta geração chegará a viver alguma delas?
– É muito provável que a gente já esteja vivendo isto de algum modo. Em algumas regiões geográficas, em alguns locais nós temos pessoas vivendo os infernos. Em outros locais temos pessoas vivendo aquilo que imaginavam como uma vida normal antes da pandemia. Noutros locais encontramos grupos que estão plantando dentro da visão agroflorestal, estão fazendo meditação, estão reciclando seu lixo, cuidando dos seus filhos, cuidando da sua saúde, imaginando como viver melhor no futuro, reduzindo suas necessidades, gerando simplicidade, apreciando a natureza, apreciando os outros seres e contemplando. Isto já seria um outro tempo, uma Era de Aquário. Eu acredito que todos os processos de transformação se dão deste modo: vão transformando uma região, depois outra região, e nós vamos aprendendo com uma experiência e outra e assim vamos avançando. É possível pessoas viverem mais próximas à natureza, ultrapassarem a visão financeira e adotarem visões ecológicas e espirituais. Colocarem isto como centro de suas vidas e viverem felizes. Então este já é o ideal da Era de Aquarius que se implantou e vai se ampliando aos poucos em várias direções.
O fato é que as visões mais elevadas são mais fortes do que as visões inferiores. As mais elevadas são mais consistentes, produzem felicidade, produzem bons resultados. As visões mais autocentradas produzem sofrimento e destruição maior ao seu redor. Então, com o tempo nós vamos entendendo que aquilo que é melhor é melhor. E que aquilo que é pior, é pior.
6 – Quais suas recomendações para lidarmos melhor com toda esta pandemia e seus desdobramentos em termos de doenças, perdas, economia, lutos e desvairios?
– Neste momento com certeza o melhor é manter um ritmo de vida adequado, em que a gente tome sol, se movimente, faça exercícios, se alimente de forma equilibrada. Que a gente evite estressar o corpo ou produzir dificuldades para a própria saúde. Que a gente tente resolver os problemas básicos de saúde através da alimentação, do movimento, da meditação e do equilíbrio da nossa energia e das nossas emoções. Eu acredito que na medida em que a gente toma estes cuidados, a doença fica minimizada. Com respeito às perdas, deveríamos examinar não propriamente como perdas, mas como alterações daquilo que a gente considera normal. E, na medida em que há perdas, temos a oportunidade de criação e recriação das realidades, de nos refundarmos em novas realidades mais elevadas. Na medida em que aquilo que parecia muito rígido se altera, é possível a gente fazer outras coisas. Se reinventar. Aproveitar as perdas como forma de encarar a impermanência e a partir desta liberação da impermanência avançar na direção de construções melhores.
Com respeito à Economia, a essência da Economia é trazermos benefícios aos outros. Então todos os seres que tiverem a capacidade de gerar benefícios para os outros estarão dentro de uma Economia Ascendente, favorável. É importante entender a Economia como inseparável da compaixão e do benefício real que podemos trazer para os outros. A Economia está ligada exatamente à capacidade de produzir benefício e demandar menos. Com crise ou sem crise, nós andamos melhor se a gente demandar menos e oferecer o máximo.
Com respeito aos lutos – é algo muito profundo, porque se temos perdas humanas e parentes que morrem em meio a isto é sempre muito impactante. Por outro lado, é importante a gente entender dentro de uma perspectiva de que vida e morte são manifestação de uma vida que, por sua vez, está além de vida e morte. Nós não olhamos para os nossos parentes, para os nossos lutos pessoais, como o fim de tudo. Mas olhamos como uma etapa dentro de alguma coisa muito ampla no tempo ou, se a gente tiver a capacidade, entender que isto são configurações que se dão além do próprio tempo. São configurações que só quando tivermos um aprofundamento verdadeiro do sentido da vida e da existência da vida, além de vida e morte, é que nós podemos verdadeiramente acessar isto. Podemos colocar como objetivo que durante esta vida a gente consiga se aproximar destas visões muito elevadas que as múltiplas tradições religiosas têm, não apenas a tradição budista, mas as tradições xamânicas, as tradições dos povos originários e as várias tradições religiosas que de algum modo nos trazem esta compreensão da vida e de além da morte também.
Com relação aos desvairios, eu diria que este não seria um momento para alucinar, mas um momento em que a gente se sinta liberado de um cotidiano aflitivo aparentemente rígido e a gente entenda que a vida pode ser reinventada numa boa direção. A nossa loucura deve ser esta: reinventar a vida de uma forma livre, numa boa direção. Se a nossa mente neste momento se desorganiza e perde os referenciais, que a gente pare, respire com calma, se equilibre e gere os melhores sentimentos nas múltiplas direções. A gente entenda que todos os seres aspiram a felicidade e aspiram se livrar do sofrimento. Então a gente aspira que todos os seres encontrem a felicidade, encontrem as causas desta felicidade e que se livrem do sofrimento e das causas do sofrimento. Na medida em que olhamos nas várias direções para os outros seres, ultrapassando o limite do nosso próprio autocentramento. Neste momento a gente se cura da nossa loucura, da nossa aflição, da nossa angústia.
Temos boas oportunidades para nos reconstruir, praticar a compaixão e o amor em todas as direções, entendendo que a dor é inevitável e que todas as transformações produzem dor. A gente não planejou isto, mas o nosso desafio é tornar esta circunstância como está se apresentando como um dos referenciais a partir do qual nós vamos construir realidades melhores.
PADMA SAMTEN é lama budista. Fundou e dirige o Centro de Estudos Budistas Bodisatva, em Viamão, RS e também em Canelinha, SC. O templo do CEBB Mendjila fica na rua Regina B. Clemer, número 2400, no Bairro India. Este Templo foi inaugurado em 02 de novembro de 2015.
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Que muitos seres possam se beneficiar!