Wellington Jacó Messias – advogado
A Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 5172), ajuizada pelo Partido Progressista (PP) no Supremo Tribunal Federal (STF), questiona a constitucionalidade do inciso II, do artigo 141 do Código Penal que prevê agravamento da pena para crimes contra a honra de servidores públicos. Salienta-se que o objetivo da ADI é eliminar a distinção penal criada pelo legislador entre servidores públicos e cidadãos comuns.
De acordo com a doutrina majoritária, representada por Juarez Cirino e Cezar Roberto Bitencourt, o Direito Penal tem como função a proteção de bens jurídicos essenciais à convivência social. Eis que a referida proteção se concretiza por meio da tipificação legal, bem como pela cominação de sanções penais destinadas àqueles que, no plano concreto, lesionam os bens jurídicos prescritos no Código Penal e legislações esparsas.
Nessa perspectiva, pretende-se destacar, no presente texto, as divergências teóricas manifestadas entre os ministros Luís Roberto Barroso, André Mendonça e Flávio Dino, do Supremo Tribunal Federal, no âmbito da Ação Direta de Inconstitucionalidade – ADI 5172. Aliás, a referida ação propõe o debate sobre a constitucionalidade da causa de aumento da pena de um terço para os crimes contra a honra quando praticados contra servidores públicos em razão de suas funções.
Pois bem, o relator da ADI 5172, ministro Luís Roberto Barroso, parte da premissa de que o inciso II do artigo 141 do Código Penal é parcialmente inconstitucional. Segundo o ministro, o agravamento da pena prevista no dispositivo – que prevê o aumento de um terço da pena para crimes contra a honra praticados contra funcionário público em razão de suas funções – deveria incidir exclusivamente sobre o crime de calúnia, não se aplicando, portanto, aos delitos de difamação e injúria.
O ministro André Mendonça acompanhou o voto do relator, ressaltando que o ordenamento jurídico já contempla circunstâncias agravantes quando o agente é servidor público, como ocorre nos crimes de tortura e nos delitos relacionados ao tráfico de drogas. Para o ministro, essa diferenciação se justifica pelo fato de o Estado depositar nesses agentes uma confiança institucional elevada, razão pela qual se espera deles um comportamento ético exemplar, compatível com a função pública exercida.
Por sua vez, o ministro Flávio Dino divergiu do relator e votou pela constitucionalidade da causa de aumento de pena prevista no art. 141, inciso II, do Código Penal, desde que configurado o delito de injúria. Em seu entendimento, a imunidade funcional e a liberdade de expressão não devem ser interpretadas como escudos para legitimar a prática de crimes contra a honra. Para o ministro, a norma tem por finalidade resguardar a dignidade da função pública, protegendo o serviço público contra ataques injustos que possam comprometer sua credibilidade.
Ademais, ainda que à primeira vista, possa causar estranheza, o debate em torno da proteção penal à honra de agentes públicos revela-se necessário, sobretudo diante da vigência de um Código Penal promulgado em 1940, cuja estrutura normativa reflete uma lógica patrimonialista. Ou seja, verifica-se uma tutela penal mais intensa ao patrimônio em comparação a outros bens jurídicos fundamentais, como a dignidade da pessoa humana. Exemplo claro dessa assimetria é a previsão do crime de furto simples (art. 155 do Código Penal), cuja pena cominada varia de 1 a 4 anos de reclusão. Em contraste, os crimes contra a honra apresentam penas significativamente inferiores: calúnia (de 6 meses a 2 anos); difamação (de 3 meses a 1 ano) e injúria (de 1 a 6 meses).
Nesse sentido, a doutrina de Paulo Cesar Busato é enfática ao afirmar que o Direito Penal, oferece uma proteção meramente simbólica a certos bens jurídicos, deixando de garantir uma tutela efetiva.
Em linha semelhante, os professores Paulo Silas e Airton Chaves, no artigo intitulado “bicho vale mais que gente no sistema penal?” tecem críticas contundentes à estrutura normativa penal vigente, defendendo a tese de que o Direito Penal brasileiro é essencialmente burguês. A conclusão apontada, parte da constatação de que, enquanto o Estado tutela o patrimônio com penas severas – como no caso do furto simples (art. 155 do Código Penal), punindo com pena de reclusão de 1 a 4 anos, destina penas visivelmente mais brandas à proteção da integridade física da pessoa humana, como na lesão corporal simples (art. 129), cuja pena varia entre 3 meses e 1 ano de detenção. Essa desproporcionalidade revela uma hierarquização de bens jurídicos que favorece interesses patrimoniais em detrimento da dignidade humana.
À vista disso, e retomando a análise inicialmente proposta, salienta-se que os crimes contra a honra estão previstos no Capítulo V do Código Penal Brasileiro, o qual tem por objetivo tutelar a integridade moral da pessoa humana, assegurando-lhe proteção diante de condutas que atentem contra dignidade subjetiva.
Desse modo, parte-se da premissa de que a honra pode ser compreendida como o conjunto de atributos morais e sociais que definem a dignidade da pessoa, englobando o respeito perante os concidadãos, o bom nome e a reputação socialmente reconhecida do indivíduo.
Aliás, é importante destacar que a Constituição Federal de 1988, em seu artigo 5º, inciso X, assegura expressamente a inviolabilidade da honra e da imagem das pessoas, estabelecendo o direito à indenização nos casos de violação. Trata-se, portanto, de um bem jurídico tutelado pela norma máxima do ordenamento jurídico brasileiro, cuja proteção não pode se limitar ao âmbito cível, devendo, igualmente, receber tratamento adequado na esfera penal, em consonância com sua relevância constitucional.
Nesse viés, a divergência inaugurada pelo ministro Flávio Dino provoca importante reflexões, entre os questionamentos emergem: o que se compreende por interesse público? Ofender um servidor público, equivale a atentar contra a estrutura do funcionalismo público? Em que medida a honra do servidor público deve ser distinguida da honra do cidadão comum? Por fim, seria moral e constitucionalmente aceitável, em uma sociedade democrática, a adoção de tratamento penal diferenciado a depender a posição institucional da vítima?
Eis que tais indagações são essenciais para aferir a legitimidade e proporcionalidade das normas penais que conferem proteção qualificada a determinados grupos sociais, sob pena de se incorrer em desequilíbrios normativos incompatíveis com os princípios da igualdade e da dignidade da pessoa humana.
Considerando que as questões anteriormente levantadas, este subscritor entende que o inciso II do artigo 141 do Código Penal é integralmente inconstitucional, na medida que estabelece uma causa de aumento da pena exclusiva para ofensas dirigidas a servidores públicos, conferindo-lhes uma proteção penal diferenciada em relação aos demais cidadãos. A manutenção da constitucionalidade desse dispositivo implica validação de uma seleção de cidadãos, em que a honra de determinadas pessoas passa a ter maior valor jurídico do que a de outras, unicamente em razão da posição que ocupam na estrutura estatal.
Ademais, vale ressaltar que, em contrapartida, não se pode normalizar, sob pretexto de se viver em um espaço democrático, críticas ácidas ou ofensivas dirigidas a qualquer pessoa que atue em nome do interesse público. Permitir tal conduta sob o argumento de liberdade de expressão significaria naturalizar práticas que, na essência, podem configurar ilícitos penais, legitimando, assim, a ocorrência de crimes contra a honra de indivíduos que exercem funções estatais.
Por fim, defendo que o Congresso Nacional, ao invés de criar causas de aumento de pena especificas para crimes contra honra praticados contra servidores públicos, deveria promover uma revisão legislativa da pena-base dos crimes de calúnia, difamação e injúria. Visto que a medida proposta, permitiria que todas as condutas atentatórias à honra, independente dos status da vítima, fossem punidas de forma proporcional à relevância do bem jurídico tutelado – a integridade moral da pessoa humana. Dessa forma, o Direito Penal deixaria de oferecer uma proteção meramente simbólica a esses delitos, passando a assegurar uma tutela efetiva, condizente com os valores fundamentais consagrados pela Constituição Federal.