Dr. Wilian Duarte da Silva
Em final de vida, ler e escrever, se aprende muito pouco. Quanto mais se lê, menos se sabe. Tudo vai se acumulando na mente e os neurônios atrapalham mais do que ajudam. Ao formar um pensamento, passa-se a escrever, ato contínuo, aparece outro, anulando ou pervertendo o anterior e assim sucessivamente, embaralhando tudo. O esforço é redobrável, para agrega-los e conectá-los, se não quiser ser levado a um amontoado de escritos, sem pé e sem cabaça. É primoroso o encadeamento dos raciocínios.
Nesses ajuntamentos de pensamentos bons ou ruins, os esforços mentais, vão dando forma ao texto. Hoje, pressionado pelos catalisadores da mente, passo a discorrer sobre – Os Estrafegos dos Bêbados (os atrapalhados da vida). São eles: Bem-Te-Vi (Antônio Vasquez), Gaturamo (Davino Correia) e Periquito (Valmor de Souza), moradores da velha Farroupilha e adjacências, das décadas de 60/70. Cada qual, com histórias definidas ou diferentes, mas correlatas na junção da cachaça. As implicantes bebedeiras de fins de semanas, quase sempre repercutiam no órgão policial local.
Bem-Te-Vi, residia bem próximo da “Casa Mortuária”, em terras de Jener Reinert, antigo proprietário da “Rádio Clube”, primeira da cidade. Vivia com sua carroça transportando cana de açúcar ou fazendo pequenos fretes. Ao passar por alguém, assobiava “bem-te-vi”, como se fosse o verdadeiro passarinho. Impressionante.
Sempre alegre, acenava para todos, repetindo nos lábios, continuamente o canto do bem-te-vi. Era conhecido de longe, por causa de seu jeito extrovertido, de pássaro cantante. Tornou-se também, exímio conquistador de mulheres. Verdadeiro mulherengo. De quando em quando trocava de consorte. Viveu com dez, ao longo da vida, sem nunca ter filho.
Em festas de igreja, depois de tomar “umas e outras”, no dizer de frequentadores de botequins, considerava-se o capitão do time, até ser afastado. Era um carroceiro festeiro e imitava o canto do pássaro bem-te-vi, mas chegado a bebedeiras nos finais de semana.
Outro, Davino Correia, apelidado de Gaturamo, de estatura baixa, forte, usava chapéu de palha, trabalhava como servente de pedreiro. Via-se frequentemente nas construções do único pedreiro de formação da cidade, conhecido por Zé Pedreiro. Na composição da argamassa de cocho, em tempo que não havia betoneira, era tido como “o melhor”. Fora do trabalho, tonava-se um seresteiro da noite, percorrendo os bares da cidade, bebendo pinga, para satisfazer sua ânsia ou compulsão. E, talvez, extravasar os desacertos e desentendimentos familiares.
Nessas andanças noturnas era xingado, pela cantoria estridente. Por vezes, levado a desforra pelos incomodados. Nos finais de semanas e feriados, o dia e a noite eram seus parceiros sequentes, sem ver a luz solar. Qualquer lugar, era seu paradeiro, para descanso do corpo puído e alívio da alma benta, encachaçada.
O terceiro atrapalhado da vida, Periquito, de nome Valmor de Souza, era esbanjador de conversa. Durante o dia, fazia biscates, pelo pão de cada dia. À noite, por onde passava, qualquer boteco, era ponto de bebedeira e às vezes de pequenas confusões. Dia que não trabalhava, a bebedeira começava cedo. Famoso pela forma falante e repetitiva, após aconchegada caninha. Perturbava o ambiente, rodando por onde queria, com objeção de presentes. Não fazia distinção na conversação e nem calibração no que dizia. Pobre descampado que provocava risos e badernas, mas sério na vida pessoal. Andava cambaleando pelas ruas e vielas, disparando falácias da sua imaginação, sem sequer dar ouvido as queixas recorrentes da vizinhança. Levado, esporadicamente, por policiais, para descanso na Delegacia.
Eram pessoas simples, corretas, casadas, de trabalhos pesados ou grosseiros, mas pertinentes na consumação da birita. Hábito adquirido na benevolência das amizades, em botecos, ou talvez, por desentendimentos ou preocupações familiares cotidianas. Nunca, por instinto de malvadeza. Nessas constantes beberagens, fui por vezes, acionado para demovê-los de reprimendas de ordem pública. Fazia isso, por amizade e comiseração.
Certa ocasião, em campanha política, como candidato a prefeito, fui fazer um comício na sede do Sindicato dos Trabalhadores Rurais, promovido pelo estimado amigo Dr. Almir Zunino, de saudosa memória. Vinha do interior, um tanto cansado e atrasado, ao entrar no recinto lotado, olhei para os lados, vi os três sentados na última fileira, gritando “dá pau doutor, nós estamos aqui para aguentar”. Eram os reflexos da gratidão, querendo compensar os benefícios recebidos, por momentosdifíceis, sem a liberdade devida. Perdi a eleição, mas não a postura e a dignidade. Às vezes, depois de tudo dar errado, a vida prova que tinha planos melhores para a gente.
Aos três caminhantes, abarcados do mesmo espaço, amigos de infindáveis noitadas, registro com singeleza, um pouco das suas peripécias, praticadas ou sofridas, como contribuição ao folclore batistense.
Aos leitores, amantes de estórias corriqueiras, o meu abraço.