Dr. Wilian Duarte da Silva
Corria os anos de 1944/47, período em que iniciei e terminei o curso primário, em escola isolada ou reunidas, da nossa querida cidade. A escola funcionava numa casa de madeira, bastante rústica, localizada numa das extremidades da praça, sem denominação e fazia frente com a velha igrejinha, de saudosa memória.
Criança de oito anos, despreocupado com a vida, gostava de brincar e estudar, não tanto. Na escola, não via a hora de encontrar com os coleguinhas, no recreio. Tudo era novidade. Procurava saber o que se passava no círculo da nossa escolinha, que nada oferecia de entretenimento. Nos finais de semana, o desejo e alegria de me reunir com os amiguinhos, para subir e descer o morro da Estiva com calhas de coqueiro. Jogar peteca, nome que se dava a semente de garapuvu. Jogar tilica, conhecida por bolinha de gude. Novidade da época.
Os tempos eram outros.
Lembro da acanhada escolinha com poucos alunos. A amizade da turminha e os relacionamentos afetivos, ensejavam grande contentamento. Sabia que em qualquer grupo, sempre desponta um ou outro, por suas virtudes. Em razão da convivência diária, um coleguinha, se tornou meu amiguinho de verdade. Sabia de tudo, cativava a atenção de todos, além de muito inteligente, bondoso e respeitoso. Seu jeito de falar, delicadeza e modo de agir, me dava certeza de ter conquistado um companheirinho de primeira grandeza. Considerava-o, meu ídolo. Tudo que fazia, espelhava grandiosidade de espírito. E digo mais, de todos os predicativos lhe atribuído, a confiança era de singular destaque. Apresentava-se na escola bem asseado, diga-se, em qualquer lugar. Usava roupas simples, é verdade, mas limpas, apesar de andarmos descalços. Aonde aparecia, era cortejado por sua simpatia e sem qualquer rompante.
Em dia que não recordo, sua mãe foi na escola falar com Aracy Espíndola Dalsenter, nossa professora, que dava atenção especial ao grupelho de principiantes escolares. Pude ver de longe sua genitora, trajando um vestido branco, sem decote, com cabelos pretos curtos. Observei, se tratar de pessoa recatada, diligente, de conversa meiga e respeitosa. Passei a imaginar que meu herói tinha muitas virtudes, graças a sua mãe.
O tempo passou, eu contava onze anos de idade, o estimado amiguinho, com alguns meses mais velho. Agora, cursando a terceira série do ensino primário, em outra escola moderna, na mesma praça, ao lado da mesma igreja. A professora era outra. Chamava-se Ana Regis Arantes, inteligente, dedicada, sempre atenta aos anseios da criançada. A amizade com o coleguinha, seguia mais sólida. Admirava-o, por sua atitude coerente de lealdade e presteza. Nesse tempo, tive o prazer e satisfação de recebe-lo em visita na minha casa. E, na mesma ocasião, me convidou para visita-lo. Dizia morar nas imediações de Ribanceira do Sul.
Certo dia de esquecida lembrança, passou a narrar na primeira pessoa, uma história fascinante, que me deixou bastante curioso. Palpitante de entusiasmo, passou a dizer, fui na localidade de Farroupilha, a mando de minha mãe, a procura de uma velhinha descadeirada, que pedia esmola. Era uma senhora extremamente necessitada que precisava de ajuda. Minha mãe compadecida, diante de tamanho sofrimento, me mandou a procura da indigente, que trajava um vestido escuro, com lenço preto na cabeça.
Nunca fui na dita localidade. Ouvia falar que se tratava de lugar de gente pobre, mas honesta. Saí a procura da miserável, ao passar no cemitério, posto atrás da igreja, levei um baita susto. Levantou-se de dentro do campo dos mortos, do lado de uma catacumba, um infeliz homem de cor escurecida, maltrapilho, escrachado, com cabelos compridos esgadelhados, que me apavorou. Aparentava alma penada, do além. Daí para frente, caminhei temeroso, amedrontado, imaginando em bicho-preto que pudesse me atormentar. A certa distância do caminho, me arrepiei de tristeza, ao ver num casebre, uma pobre senhora esquelética, com os olhos esbugalhados, de dar medo, acompanhada de um cachorro guaipeca, sem poder latir, de tanto fraco. Continuava olhando de um lado para outro, tentando achar a coitada miserenta. Não a encontrava. Até passei por duas mulatinhas, que nem se quer me olharam, quanto mais, dar informações.
Depois de grande caminhada, cansado, sem ânimo, tive vontade de desistir da missão. Mas, quase no final do trajeto, encontrei um velho sentado na escadinha de madeira de sua casa, um tanto desconsolado. Parei e perguntei a respeito da anciã pedinte. Depois de ter-lhe dado suas características, respondeu, “não vi, não vi não”. Com receio de que o atencioso homem, não quisesse me contar, por suspeita ou medo, passei a conversar carinhosamente, na possibilidade de alguma informação. Apesar do bate-papo agradável, afirmou novamente, “não vejo alguém, há muito tempo”. No momento da minha despedia do generoso homem, apareceu um jovem bem afeiçoado, nos cumprimentou gentilmente e passamos a conversar. Minhas esperanças se renovaram, na expectativa de alguma notícia. Minha alma foi ao céu de contentamento, por instantes. Contei ao moço da minha aflição, por não ter encontrado a quem procurava e também do diálogo que mantive com o carinhoso homem presente. Se mostrou apreensivo, por um lado, por outro, deu graciosa risada. Fiquei um tanto desalinhado, para não dizer atarantado, pelo riso do visitante novato. E, sem saber o que falar. Quando então, passou a me dizer, o homem com quem conversava é cego e toca violão. Não enxerga, desde nascença. Meu santo, não percebi o defeito, até porque, estava há uns dez metros distante. Daí, dei conta da negativa do dócil homem, em não ver. Contou ainda, que o cego se chamava Pedro e, vivia tocando o instrumento, de casa em casa, puxado por um neto, para sobreviver. Me lembrei no momento, de ter ouvido falar de um tal Pedro Cego, morador da Farroupilha. O nome era outro, mas todos, o conheciam, por Pedro Cego. Confesso que fiquei contente em conhece-lo, pois, as referências a sua pessoa, eram emocionantes e acalentadoras, como também, muito bem visto e recebido pela gente da pequena Vila. Deixei de lado, por momentos a investigada idosa.
Nesse instante, o prestimoso Pedro Cego, se manifestou, dizendo, que não faltou com a verdade. Confirmei o que havia dito. Fez breve exclamação, revelando, o pessoal da Farroupilha é gente boa, crente e carente. Perguntei, crente em que? Respondeu com muita firmeza, além de carente por ser pobre, é crente no filho de Deus, Jesus Cristo. Que sua cegueira o impossibilitava de executar outros serviços. Então, se predispôs a cantar e tocar violão, para alegrar as pessoas, mas sobretudo, por necessidade da esmola que recebia. Se considerava feliz, pela vida que levava e até da cegueira. Se julgava um predestinado desse mundo sem fim. Disse ainda, a nossa Farroupilha vai melhorar. Há de chegar o dia que nosso lugar terá outro nome. Crescerá e ficará no centro da cidade, com gente para todo lado. Acreditava no que dizia. E, repetiu, essa crendice, irá acontecer. Pensei, o prazeroso cego além de cantar e tocar violão, prevê o futuro.
Acreditei piamente na palavra do prodigioso homem sem visão. Via nele uma pessoa simples, honesta, séria, correta, que me deixou muito contente. Acrescentou ainda, o tempo dirá. Atento a conversa, esqueci da indigente, mas fui lembrado pelo jovem mancebo, da outra parte que dissera. Da sua apreensão com relação a pessoa procurada. Afirmando, ela esteve aqui, mas se afastou há mais de semana. Com essa explicação e do que vi por onde passei, só me restava voltar para casa e narrar o ocorrido, para minha estimada mãe. Não esqueci também de transmiti-la, a história interessante e comovente do velho Pedro Cego, que por destinação da natureza, sofria de cegueira, mas nunca, em momento algum, se abalou ou reclamou da sua bem-aventurança. Deixou saudades na gente da Farroupilha. Hoje, é a rua Jorge Lacerda, no centro da cidade batistense.
Aos farroupilhenses, o meu respeito e grande abraço.