Alessandra Destro Pizzigatti – Budista
Quando andamos pelo mundo não estamos sozinhos de fato. Andamos dentro de uma teia de relações que não precisa estar estabelecida previamente, no sentido convencional; mas já vivemos dentro de um processo em que os seres humanos se ajudam, se protegem. Podemos chamar esse aspecto de méritos, que foram estabelecidos em um tempo anterior. A própria existência do ser humano está na dependência desse fato. Não vivemos sozinhos, e nos relacionamos desse modo, através de méritos. Também nos relacionamos através de carmas. Os seres humanos têm essa contradição: eles se protegem, mas são, ao mesmo tempo, predadores uns dos outros, em vários níveis. Esse é um ponto comovente. Especialmente, neste tempo de agora, os seres humanos são talvez o maior perigo para os próprios seres humanos. A importância dos outros predadores foi se reduzindo, e os seres humanos se tornam a grande ameaça aos próprios seres humanos. Essas são as relações que temos a partir de carmas e méritos. Porém, de modo geral, não vemos isso – vivemos sem nos dar bem conta desses aspectos. Mesmo as expressões “carmas” e “méritos” pertencem ao budismo e às tradições hindus, e foram importadas pelo Ocidente com uma compreensão ainda limitada. Esses aspectos de carma e mérito são os que regem o que chamaríamos de nível grosseiro. Em um certo momento começamos a vislumbrar algo em nós de forma um pouco mais profunda, e esse vislumbre mais profundo vem justamente desta conexão com méritos e carmas, que são uma interface com o aspecto sutil.
Temos uma existência no mundo que parece ser a nossa existência, o nosso jeito de andar. Se quisermos nos descrever, tiramos uma foto e dizemos: “eu.” Isso, na perspectiva budista, é um nível muito grosseiro. Se a pessoa for falar de si, vai falar de seus impulsos, suas visões, desejos e apegos; das coisas que já obteve a partir de desejos e apegos; das satisfações que já teve no nível de desejo e apego; dos lugares que visitou; do que vê como correto, como visão, como sabedoria. Quando a pessoa descreve esses aspectos, na perspectiva budista está descrevendo os seus carmas, os seus méritos, as estruturas dos doze elos e os processos de como sua própria mente está operando. Não está descrevendo realidades; está descrevendo construções: opções que não percebe como opções; ela pensa que aquilo é mesmo o que ela é. O aspecto grosseiro inclui essa incompreensão da nossa própria existência. Inclui a vida enquanto a busca de preservar os impulsos cármicos, e realizar tais impulsos cármicos. Não entendendo bem o que é carma e o que é mérito, tentar preservar a sua própria vida, seu próprio impulso, e considerar que liberdade é, efetivamente, poder realizar o impulso que vier à mente.
Podemos começar a nos perguntar de onde viemos e por que todo mundo, enfim, vive e morre. De onde vem esse tipo de situação? Algumas coisas são um pouco perturbadoras, porque as pessoas têm o seu cotidiano, e acham que aquilo é tudo; mas se olharem para o céu noturno, verão que estão dentro de algo muito grande. Se tomarem um telescópio ou um binóculo e começarem a olhar, irão se surpreender, porque estamos envoltos e fazendo parte de uma coisa muito extraordinária. As pessoas que começaram a pensar sobre isso sempre se defrontaram com visões que eram muito mais amplas do que as visões do cotidiano. No budismo, se olharmos o conjunto de enganos que vivemos – essa realidade grosseira que vivemos agora e que parece totalmente abrangente – sob o aspecto sutil e secreto, é super limitado. Ele termina sendo internalizado como a nossa própria identidade.
A nossa identidade brota aos nossos olhos como uma sabedoria interna que responde, de modo natural, às aparências. Essa sensação de resposta às aparências dá uma base para apontarmos nossa própria existência, porque se há esses impulsos correspondentes às coisas, isso é a própria realidade das coisas – e então esses impulsos são a nossa existência. Terminamos por nos descrever a partir dos impulsos que brotam. Quando olhados das perspectivas sutil e secreta, dentro das tradições védicas ou budistas, eles são vistos como a própria ignorância, simbolizada pelo javali ou pelo animal que olha para baixo, cavoca a terra e pensa que isso é tudo. Esconde-se em buracos e pensa que, desse modo, lida com toda a realidade: tem impulsos, agressão, acumulação. O javali é o símbolo do aspecto que se refere à nossa própria identidade que está obscurecida. É como se o javali nunca contemplasse o céu noturno e nunca pensasse: “Afinal, onde é que nós estamos?” Essa noção de vida e morte, de origem e destino, e de que somos muito pequenos face ao céu gigantesco, é o que começa a nos remeter àquilo que chamaríamos de bloco um, o lugar onde começamos a perceber que a visão limitada do javali não dá conta de tudo. Existem coisas muito mais amplas.
Quando vamos falar sobre saúde mental e emocional precisamos desse quadro, caso contrário não conseguimos trabalhar isso na perspectiva budista. Temos que entender que as pessoas, operando nos seus mundos na perspectiva grosseira, com suas identidades e seus impulsos, o fazem por carmas e méritos que não percebem. Esses carmas e méritos vêm de visões de mundo – que elas também não percebem – a partir dos doze elos da originação dependente, que, junto com a estrutura de carmas e méritos, também não são fixos, e brotam a partir da liberdade natural da visão secreta. Esse aspecto natural produz a sustentação da visão.
Os seres não encontrarão nenhuma solução final na perspectiva grosseira, nem na sutil. A superação dos obstáculos verdadeiros só virá na perspectiva secreta, especialmente se desenvolverem a habilidade de Zangtal, que é a abertura que penetra todas as coisas. A abertura de ver as realidades operando nos vários modos, integrá-las e aceitá-las. Vê-las na sua limitação e no seu mérito, na sua capacidade de atribuir realidade, e daquela realidade operar de modo objetivo. Essa é a visão budista da realidade onde estamos operando.
PADMA SAMTEN é lama budista. Fundou e dirige o Centro de Estudos Budistas Bodisatva, em Viamão, RS e também em Canelinha, SC. O templo do CEBB Mendjila fica na rua Regina B. Clemer, número 2400, no Bairro India. Este Templo foi inaugurado em 02 de novembro de 2015.
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Que muitos seres possam se beneficiar!